“EU SOU A MAHAKALA NEGRA! E A MINHA BANDA CHAMA-SE A FÚRIA NEGRA. FECHEM OS OLHOS, RESPIREM FUNDO, E NÃO PENSEM EM NADA — PORQUE EU VOU ESMAGAR-VOS A CABEÇA ENTRE OS MEUS DENTES!!!”
Mahakala, uma mulher negra, de pele brilhante como petróleo, é uma deusa irada, uma vocalista punk-hardcore straightedge, que na total força e pujança da sua fúria dá, assim, inicio ao concerto da noite. A tempestade chegou. O fim do mundo começou. Este é o som da noite, duma noite rubra.
“Querem som da pesada? Eu dou-vos da pesada!”
E é da pesada mesmo. A bateria começa a metralhar sem misericórdia, é uma locomotiva descontrolada, o som explode do palco e acerta no público, uma massa louca, em êxtase. O baixo, sempre a bombar faz disparar os corações em taquicardia, comprime as costelas; enquanto as guitarras, furam como uma broca de diamante pelos tímpanos, atravessam o osso, electrificam o crânio mandando choques e faíscas pelas cabeças até à medula. O microfone é esmagado entre os dedos da Mahakala. Os movimentos dela são ondulantes, os braços como chicotes, suados e negros, e a voz rasgada, grossa, ecoa vinda do mais profundo dos infernos. “Eu sou a Mahakala negra! E a minha voz é voodoo, a minha voz acorda mortos! Acordem!”
E essa é, no fundo, a essência do punk-hardcore straightedge e fusão: acordar os mortos e os adormecidos da nossa sociedade. E quem são estes necromantes do mundo moderno, que estão a tentar acordar os mortos — quem são os punk-hardcore straightedgers? Eles são os sobreviventes duma raça de amantes do metal duro e música rápida. Eles são mutantes, querem mudar o mundo, são loucos, e muitos são veganos. A sua adrenalina, o seu desporto radical de vida e de morte, é tocar música pesada.
A sua música é rápida, potente, cheia de energia e de letras filosóficas, cheias de pensamento e reflexão. As suas músicas e letras são contra a discriminação racial, álcool, drogas, consumismo e exploração dos animais. Explicando em poucas palavras o movimento punk-hardcore straightedge e fusão, estes são movimentos e projectos musicais com algumas ligações aos estilos de música punk, hardcore, metal, ragga, rap, e tudo mais — desde que o resultado seja pesado. No entanto, se bem que haja semelhanças nos estilos e no som, há diferenças fundamentais entre estes grupos, muitos especialmente nas atitudes e posturas em relação à vida. Vamos, então, ouvir o que alguns punk-hardcore straightedgers dizem acerca destes movimentos:
“A nossa postura na vida tenta ser diferente e criativa. Nós não concordamos com a atitude hedonista e auto-destructiva que contamina a nossa sociedade, isto incluindo a juventude e as banda de música. Nós estamos, de facto, muito conscientes de alguns dos problemas fundamentais que estão a causar sofrimento e a destruir a nossa sociedade, por isso nós fortemente desaconselhamos o álcool, drogas, produtos resultantes da exploração de animais, e as relações casuais.” (Emma “Fire-Dragon”, guitarrista dos Merchant of Menace).
“Nós somos contra a violência e a guerra em todas as suas formas. Por isso nós também somos contra as drogas e o álcool, que são produtos tóxicos que trazem guerra para dentro do nosso corpo. Talvez nós não consigamos, directamente, parar com as grandes guerras que estão a acontecer por esse mundo fora. Mas podemos, seguramente, evitar aquelas que começam dentro de nós. O que significa que devemos ser cuidadosos com as coisas que trazemos para dentro de nós mesmos, isto se quisermos evitar “guerras civis” nos nossos corpos e mentes. Nós somos a favor de um estilo de vida sem crueldade. E isso está relacionado com o que consumimos, comemos e até vemos na televisão!” (Josephine Linqvist, baterista dos Nomad).
“Nós gostamos de tocar música muito forte e potente. A rasgar mesmo. É uma maneira de acordar as pessoas. Nós queremos mostrar-lhes como é destrutiva a maneira como certas coisas são feitas na nossa sociedade de hoje em dia. E a música é uma muito boa maneira de chamar as atenções. Demasiadas pessoas, animais e seres vivos estão a sofrer — AGORA! Ouçam: as florestas estão a ser destruídas, os animais estão a ser dizimados, e as pessoas estão a ser intoxicadas! Nós temos, de novo e sempre, de ganhar responsabilidade sobre as nossas próprias vidas. Temos de ser o BOSS, o patrão das nossas vidas. Cada membro desta sociedade tem de aprender a respeitar O TODO! Os problemas no mundo só irão diminuir quando nós pararmos de contribuir para eles. Nós temos de dar o primeiro passo.” (Afro-Spider, baixista de Don´t Panic it´s Organic).
“Eu não pertenço a nenhum grupo, nem religião, nem partido organizados. Não pertenço a nada, nem a ninguém. Sou livre. Apenas amo a música e para isso não preciso de pertencer a nenhum partido, nem nacionalidade, nem gang. A minha pacifica tribo sou só eu, e a minha religião é o pôr-do-sol, a lua que rasga as nuvens na noite, e o vento quente que sopra para fora da minha boca e do meu nariz. Sou um nómada dos tempos modernos, mas no fundo nunca estou sozinho, pois sou um irmão deste mundo, filho de todo este universo. O meu coração e o coração deste universo batem ao mesmo ritmo, como um só. ONE HEART, ONE LOVE como dizia o grande SHAMAN. Para mim o punk hardcore e o straithedge são atitudes na vida que nem precisavam de ter nome. O importante é sentir o ENCARNADO do sangue e da coragem a correr forte nas veias. O importante é sentir o DOURADO da inteligência a arder forte que nem um sol nas nossas mentes. O importante é tocar o VERDE da paz a unir-nos às nossas raízes, à natureza e a todos os seres vivos que são nossos irmãos. O importante é aceitarmos o nosso destino como seres interdependentes desta vida, deste cosmos. Somos todos um só. Não há fuga possível”. (Coração-Preto, ex-vocalista dos Fusão-Empática).
“Uma FORÇA quer-te neste mundo. Uma FORÇA bombeia o teu coração e dá brilho aos teus olhos. Uma FORÇA desenha o teu destino, tal como risca a noite com cometas, estrelas candentes e uma lua que é um espelho da tua alma, do teu espírito. Tu isto sabes, tal como sabes que existes. Sente: EU EXISTO!!! E essa consciência, essa FORÇA, é um reflexo desse algo maior, duma vida que brilha como as supernovas que explodem pelos céus, na noite eterna. Não te queixes, não te preocupes. Sofrer faz parte. Porquê, não sei. Talvez para nos fazer querer encontrar aquilo que já somos — mas não sabemos.... A FORÇA.
A vida magoa-te, tortura-te? Então grita, grita da tua cruz, do teu palco — grita até que os amplificadores peguem fogo, as colunas levantem voo e o microfone fique feito em migalhas de luz. E se o mundo é estúpido cabe A TI fazer a diferença, viver a diferença. O direito à diferença. Esse é o direito que mais me interessa — nem é o direito à igualdade, mas sim O DIREITO À DIFERENÇA!!!!” (Mahakala, vocalista dos Fúria Negra).
“Diz assim lá no I CHING: “Sê inocente, esse é o supremo sucesso da tua vida. Se fores paciente a vida levar-te-á onde deves chegar. Se uma pessoa não for ela mesma, então encontra o infortúnio, a tristeza...Se tiveres confiança no espírito que está dentro de ti, e que contigo nasceu, então atingirás a inocência pura que te guiará os passos para o que é certo, com uma certeza instintiva sem qualquer pensamento de recompensa ou proveito pessoal...” Estás a perceber? Há muitos anos atrás escrevi uma música para a minha banda que se chamava: À sombra do carrasco. E o carrasco, o torturador, dizia a música, está dentro de nós, somos nós mesmos. Frequentemente, nós somos o nosso próprio pior inimigo. Também, durante anos, a pessoa que mais odiei neste mundo foi a mim mesmo. E porquê? Porque nos sentimos errados, inadequados, incompletos. Achamos que tudo o que tocamos fica destruído, sem sentido - nem que seja porque pousámos os nossos olhos sobre uma flor, ela irá murchar. Mas um dia algo aconteceu...
E assim a vida muda. A atitude muda. Um acontecimento, uma palavra, alguém que aparece no nosso destino.... E a vida muda-nos, algo novo aparece para nos mostrar outro caminho.
Queres ver outra vida? Outro mundo?
É preciso recuperar confiança, não em nós mesmos porque isso não chega, mas sim na VIDA. Confiarmos no instinto, no nariz, saber dizer não às coisas destrutivas e às mentiras que a maior parte do mundo nos quer enfiar pelas orelhas. Quando é a vida a falar, e não a nossa cabeça, então o nosso instinto sabe o que devemos e não devemos fazer. O nosso nariz e o nosso coração têm muito instinto, e por isso podem ser puros, inocentes. Cheiram a merda ao longe e afastam-se.
O mal não está em ti. Está no facto de que esta nossa sociedade faz as pessoas morrerem à fome dentro da sua alma. Aquilo que nos é oferecido é pouco, muito pouco e muito poluído e impuro. Por isso, mesmo quando se tem “tudo” aquilo que a nossa sociedade acha de importante, e que nos devia fazer feliz, mesmo assim não nos faz felizes — mesmo assim tu, eu e mais algumas pessoas deste mundo, não nos sentimos felizes com o que nos dão. Depois dizem-nos: nunca estás feliz com nada!
E não estou!!! Com as vossas drogas, televisões, guerras, modas, carnavais, "estórias de amor", tudo isso é uma treta. Vou viver para quê? Para o dinheiro, o carrão, a discoteca, a telenovela, o divorcio e o corno, a paródia e o vazio ao ver o rosto no espelho? Isso não me contenta. Não me chega, não me chega. Estás a perceber?!
Queres sentir a vida? Abre bem as mãos da próxima vez que sentires o vento, e deixa-o soprar-te por entre os dedos. Aí não saberás se és tu que corres no vento, ou se é o vento que corre em ti....
E lembra-te do que o Buda disse: NÃO HÁ CAMINHO PARA A FELICIDADE. A FELICIDADE É O CAMINHO.” (Macraft D’Rassing, guru dos Fúria Negra).
Bandas de referência do straightedge e fusão: Fúria Negra, Soulfly, MasMorra Podre, Youth of Today, 108, No Use For A Name, Shelter, Fugazi, Propagandhi, Asiandubfoudantion, Clawfinger, etc.
8 comentários:
Mahakala, sua "ganda" maluca!
O certo é que a descrição do som e espectáculo está de tal forma impressionante que consegui entrar de penetra num desses concertos...
A música ainda não conheço, mas a filosofia de vida agrada-me. E se adiro a formas de alimentação alternativa ( e refiro-me à macrobiótica, nada de espiritual) porque não experimentar esta cena do punk-hardcore straightedge e fusão??!!!
Bloguemos agora de coisas mais sérias
Acordar para a vida não é mais do que gritar aos microfones? Acordar para a vida não é mais do que dizer não? Não podemos em silêncio acordar? Não podemos dizer sim acordados?
Será que as massas existem? São manipuladas, adormecidas? Julgamos e acusamo-las de dormirem nos sofás. Será que pensam ter o poder no telecomando, poder para mudar de canal? Será que ao invés são telecomandadas? Pergunto-me se o “EU” foi eliminado, pergunto-me se faço parte de um “NÓS” ou de um “ELES”. Será que também morro à fome dentro da minha alma? Também não me contento com o que me é oferecido, também nunca me sinto feliz, mas a questão é: Será que alguém sente?
Não percebo bem o sentido disto (que acabo de escrever), mas será que alguém percebe?
Seriam então cantigas de intervenção? Nesse caso, não posso deixar de apontar a brutalidade do protesto contra a brutalização.
Será que aumentar o volume é solução para quem deseja ser ouvido? Julgo que não. A intoxicação por informação é tal que fazê-lo apenas reforça a habituação - no sentido junkie do termo - do destinatário da comunicação, ou seja, promove a necessidade de doses crescentes do mesmo. Isto lembra a corrida aos armamentos ou o ciclo do abuso.
Como é que queremos viver? E o que é que estamos dispostos a fazer por isso? É possível escaparmos a nós próprios? (esta é particularmente relevante na medida em que é tudo menos claro que haja descontinuidade entre nós e a nossa família ou sociedade) Será mesmo verdade que só temos referências negativas, que o nosso mapa do mundo se estrutura em torno do que sabemos não querer, como se só mostrasse os vales e não os picos?
So forth and so on.
Intenso.Provocatório.
Comentário primeiro:
"(...)O mal não está em ti. Está no facto de que esta nossa sociedade faz as pessoas morrerem à fome dentro da sua alma.(...)"
Não está em ti? Em mim? Em nós? Esta exteriorização da culpa dá um "ganda" refúgio. Até quando?
(continua)
Comentário segundo: escolha, diferença e livre-arbítrio
"E se o mundo é estúpido cabe A TI fazer a diferença, viver a diferença. O direito à diferença."
O direito à diferença tem merecido um bom par de horas de discussão neste bar (ver post de Gualdin sobre o véu islâmico). Vamos lá por partes: fazer a diferença pressupõe, antes de mais, liberdade de escolha, mas, não menos importante, vontade de fazer essa escolha.
Acordar!
Somos nós que decidimos o caminho. Temos livre-arbítrio para escolher, por exemplo, não ser livres.
(continua)
(continua)
O computador do Jonas teve um probleminha com uma baleia, pelo que ele me pediu que postasse esta resposta aos nossos comentários:
Barulho nao acorda todos. Mas alguns sim.
Bruteza nao 'e solucao. Mas por vezes funciona. Depende do software dos bichos em questao. Ha bichos que so la vao com material da pesada. Da pesada mesmo.
Eu sou um desses bichos.
Peace Love Death Metal
Bicho carrapato
Por vezes pergunto-me se serás um rufia que se convenceu que havia de ser bonzinho ou um puto fixe apaixonado pela ideia de ser da pesada. Depois, acabo por achar que é muito mais complicado do que isso.
Primeira regra da ciência social votada ao estudo de objectos contemporâneos: analisar alguém é sempre ofensivo. Fujam do divã do Irmão Cerúleo.
Se fores acordado por um trovão, ou por uma folha a cair no chão, que diferença faz? o que interessa é que acordemos.
Se estamos anesteziados, duros de ouvido, sem paixão pela vida toda, e perdidos na nossa, então venha o trovão! Se precisamos de suavidade, pois que venha a suavidade.
E se há bichos a quem o trovão purgou, redimiu e salvou, pois que ribombe!
Porque eu sou um desses bichos.
Prefiro a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. Muito mais radical.
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