sexta-feira, abril 29, 2005

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

No ventre da noite

Há transições brutais: o bilhete é sagrado enquanto estás a bordo e um pedaço de lixo ou um memento mal desembarcas.

quarta-feira, abril 27, 2005

Outro 'cui bono?'

Não há verdadeira fronteira entre informação e propaganda, entre objectividade e ideologia. Não se tratam tampouco dos extremos de um contínuo. A informação pode ser verdadeira ou falsa. É essa a pergunta a fazer perante informação: será verdadeira ou falsa? Mas verdadeira ou falsa a informação é sempre propaganda. E aqui entra a segunda pergunta: de quem?

quarta-feira, abril 20, 2005

quarta-feira, abril 13, 2005

Afinal não é o altruísmo que nos move??

"Na aldeia global, a pobreza de outrem rapidamente se torna um problema nosso: falta de mercados para os nossos produtos, imigração ilegal, poluição, doenças contagiosas, insegurança, fanatismo, terrorismo."

Relatório da Grande Comissão para o Financiamento do Desenvolvimento nomeada pelo secretário-geral das Nações Unidas, in SINGER, Peter, Um só mundo, a ética da globalização, p.33

segunda-feira, abril 11, 2005

Uma posta de Mattoso (pp.35-6)

O impacto d'Os Lusíadas sobre o imaginário nacional é de tal ordem, que se torna difícil exagerá-lo, se não se compara o sentido do seu discurso com o de todos os textos anteriores que já referimos. Exprime uma espécie de euforia resultante da visão da história nacional como um conjunto cujo relato evidencia uma lógica que antes ninguém podia ter percebido. A forma poética, retórica, enfática, do discurso imprime-lhe uma força persuasiva enorme. Aqueles que se consideram membros do mesmo povo não podem deixar de se convencer que aquela é de facto a sua própria história. Assim, os receptores identificam-se eles próprios com os heróis, não como representantes do colectivo que ali desempenha as funções de principal actor. O povo, que até então fora apenas uma massa cinzenta e ignorada, cuja existência só se percebia como suporte da autoridade régia, passa para o primeiro plano das acções heróicas, independentemente de qualquer chefe. É um colectivo, e portanto um ser abstracto, mas, ao tornar-se protagonista de uma história gloriosa, adquire personalidade, isto é, uma identidade compreensível para as mentes mais simples ou mais rudes. Resta o problema de saber quantos portugueses leram o poema, nessa época e no século seguinte...

José Mattoso (2003) A Identidade Nacional. Lisboa: Gradiva.

sexta-feira, abril 08, 2005

CINEMA - Kingkard3

Hide and seek, O amigo oculto

Não aprecio filmes de terror. Acho que já temos suficientes medos na vida real...

Mas lá fui ver e o palpite de que não ia gostar muito não falhou.
Os ingredientes para um filme de terror estão lá todos: crianças, casa no campo, facas, banheira e bonecas de porcelana! Mas até aqui tudo menos mau. O pior é que a história, enredo ou seja lá o que for que se esconde atrás do suspense não me surpreendeu. O desfecho foi previsível e o filme devia acabar mais cedo. Hitchcock sabia que as revelações só devem vir no final!

Robert DeNiro está bem, como sempre!
A pequena actriz - Dakota Fanning - está muito bem caracterizada!

**

terça-feira, abril 05, 2005

CINEMA - Kingcard 2

Os tempos que mudam

Gosto muito do Gérard Depardieu;
Gosto muito da Catherine Deneuve;
Gosto muito de cinema francês nem que seja pela sonoridade;
Gosto de retratos da vida real na tela do cinema;

A combinação destes factores não foi suficiente para gostar do filme. Achei fraco, achei-o mesmo uma estopada. Cheio de pontas soltas, sem pretensão no argumento mas pretensioso na técnica de filmagem. Tive pena... estava à espera de gostar!

**

CINEMA - Kingcard 1

O Assassínio de Richard Nixon

O argumento é baseado em factos verídicos, na vida de um homem que a própria lucidez levou à loucura. Tolhido numa sociedade em que não se revê, frustrado, angustiado, acaba por transformar Nixon no bode expiatório da mentira e da corrupção planeando o seu assassinato.

O filme é pesado e deprimente, confronta-nos de uma forma fria com tudo o que nos rodeia. Não é excelente, mas a actuação de Sean Penn é-o.

****



sábado, abril 02, 2005

It

Aka ourobouros ou o carrossel da gailoa dos hamsters.

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Da depressão como pecado político

Há privilégios fracos, mantidos por um status quo sem combatividade que se aguenta apenas na medida em que não é desafiado. 'Perturbam os homens não as coisas mas a opinião que têm delas'. A depressão psicológica individual é um sustentáculo desses poderes. Mostrem-me um depressivo que eu mostro-vos um dominado. E, perdoem-me o voluntarismo, mas a causalidade é do primeiro para o segundo termo. Não me venham com dialécticas. O ouroboros é uma figura do desespero. Aí sou eu que me vou abaixo. O meu problema é como quebrar todos esses malvados ciclos que nos aprisionam. O enigma passa então a ser a localização das nascentes da depressão.

As coisas que o espaço tem. Posted by Hello