sábado, março 23, 1996

Claro-Escuro

Fade in. É-nos dada a ver a cidade à beira do lago, atravessa-a o rio de muitas pontes e, porque o dia está claro, vemos também o Monte que se ergue ao longe, já do outro lado da fronteira.

Na cidade da saúde um homem dispõe-se a morrer; é um homem velho e o seu elemento predominante, a terra, mais não deseja do que render-se à terra. Pouco restou em si dos outros elementos que a poderiam contrariar; uma vida de palavras esgotou a sua porção de água e há já algum tempo que os olhos se lhe secaram mas, ainda assim, deixou correr a torrente das imagens até ao fim; do fogo que lhe coube moldou heróis rudes, votados ao exercício de uma coragem sem porquê, fascinava-o o aço dos seus punhais pois parecia-lhe encerrar uma verdade estranha ao metal do seu aparo; do seu ar urdiu ficções inúmeras, recordo aqui o romance que figura um labirinto, o rio ao longo do qual os sacerdotes do fogo se entressonham, a moeda de vinte centavos riscada que se tornou o universo de um homem, o mago da pirâmide de Qaholom que leu a mensagem do deus num jaguar, os dois inimigos que se defrontam num sonho do qual só um deles emerge.

O homem espera, só, no meio da neblina luminosa para lá da qual adivinha o quarto, posto avançado do mundo sensível, não do mundo visível que é para si um paraíso perdido. Então, para além da bruma, surge uma presença que permanece queda e muda, ou quase, porque o cego percebe no limiar do audível uma respiração que chega até si como o clamor de uma batalha distante. Ele escuta um pouco mais atentamente e a inquietude cresce em si porque naquilo que é inquestionavelmente uma respiração ele pode distinguir entretecidos num padrão uníssono a carga da cavalaria polaca em '39 e o bramir das gaitas de foles no Mons Graupius, o clangor das armas de Heitor e Aquiles e os urros de Rolando agonizante, os rotores dos helicópteros sobre as Malvinas e o estremecer do solo sob os passos dos elefantes de Aníbal. Uma intuição percorre-o, bem como um tremor, e pergunta com voz insegura:

- Quem está aí ?

A voz que lhe responde é e não é uma voz, as palavras com que fala são humanas mas não o é a forma como são construídas; ao invés de consoantes e vogais sucedem-se todos os horrores e esplendores da guerra. As palavras emanam a pestilência dos mortos insepultos e brilham como o oiro pilhado, rangem com a dor e o ódio das mulheres violadas e têm o sabor do festim que comemora a vitória de uma tribo de canibais. Eis as palavras que a voz então diz:

- Sou Ares.

- Que queres ? - pergunta o homem após uma pausa e temendo que a resposta do deus, sendo demasiado intensa, o aniquilasse.

- Quero-te a ti.

- Vens buscar-me ?

- Venho cumprir-te.

Subitamente, a névoa luminosa dissipa-se e o homem reencontra o amarelo e o negro que há muito julgava para sempre perdidos. O deus está diante de si; os traços sobre os quais se apresenta são os de Manfred von Richtofen, o Ás dos Ases, o Barão Vermelho.

- E como o farás ? - a pergunta é acompanhada de um sorriso, o mesmo que encontrarás nos lábios de uma criança a quem é proposto um jogo novo.

- Terás de me seguir através da Porta de Marfim; as nossas montadas esperam-nos do outro lado. - Dizendo isto o deus faz surgir do seu bolso uma pesada chave de prata com a qual destranca a porta fantástica que se ergue, algo deslocada, a meio do aposento sem dar aparentemente para lugar algum. Virás ?

- Sim.

Com um gesto largo Ares empurra a porta revelando que o outro lado abre sobre uma ruína encharcada de luar. Dois cavalos pastam nas imediações e respondem prontamente ao assobio do deus ( som de uma flecha cortando o ar, de sirenes anunciando um bombardeamento ). O deus monta o alazão e o poeta a égua branca. Juntos cavalgam sobre o oceano e através da noite. Ao emergirem de uma nuvem o poeta repara que o deus assume agora o parecer do desertor Martin Fierro, sorri dessa atenção e apercebe-se de que também ele está mudado. Foi-lhe restituído o corpo que era o seu enquanto homem de trinta e poucos anos e as roupas que veste são uma variante das do seu divino companheiro.

Inútil especular acerca da duração de uma viagem que leva um homem a emancipar-se do tempo. Basta que saibamos que em certo momento são as vastas planícies da terra natal do poeta que os cascos das montadas pisam. Surge então no caminho dos cavaleiros uma estrutura que se adivinha ser o seu destino. Espécie de albergue miserável e prostíbulo nascido na encruzilhada dos trilhos da pampa selvagem que subsiste fora do tempo, este é o tipo de lugar onde esperaríamos encontrar os gringos do Wild Bunch. E, de facto, eles aqui estão.

O ambiente é o que tu conheces de tantos westerns; os dois recém-chegados são recebidos por uma bateria de olhares inquisidores e por um silêncio opressivo que só se dissipa quando o deus se dirige ao bar e pede de beber.

- Ambrósia, por favor.

O barman coloca um dedal de vidro sobre o balcão e nele verte o conteúdo de uma garrafa de ónix. Ares bebe de um só trago e dirige-se então ao seu companheiro:

- Vês o russo de olhos de fada ? Pois bem, é o pior dos assassinos; tu sempre idealizaste a coragem, agora, através dele poder-te-ás conhecer. Toma, lutarás com a minha faca, é o trabalho de Hefesto. Vai e provoca-o, qualquer ninharia bastará.

O poeta dirige-se a Olhos de Fada e segreda-lhe algo, o suficiente para que se dê início à estranha dança sem música. Incaracteristicamente os primeiros passes do russo apenas arranham o homem que se sente vacilar mas que, fazendo um esforço consciente, toma impulso para uma investida fatal; Olhos de Fada retira o seu corpo do caminho do golpe mas deixa a faca onde possa encontrar o peito do adversário. Os espectadores voltam aos seus interesses prévios, tanto quanto lhes diz respeito tudo está acabado.

Ares arrasta o moribundo para fora de portas de modo a que este possa ver o céu.

- Agora sabes.

- Sim, fui corajoso. É este o fim ?

O deus sorri, assume a forma de Winston Churchill, tira um trago do charuto e diz:

- Este não é o fim, não é sequer o princípio do fim, mas é talvez o fim do princípio.

Fade out.

domingo, março 17, 1996

Strange Days

Nas palavras de Björk: zing boom! Nas de Jonas Llander: bomba de fragmentação. Intrincados níveis de texto. Juliette Lewis é P. J. Harvey. Angela Bassett rouba o filme a Ralph Fiennes.