quarta-feira, setembro 15, 2004

O imigrante nunca existiu

Às definições de imigrante teremos de chamar multidão, porque são muitas. Há quem defina imigrante como alguém que não residindo num país entra neste com a intenção de aí residir e há também quem dê ao conceito um cunho mais económico, entendendo por imigrante todo o estrangeiro que vem para Portugal à procura de trabalho ou para ocupar um trabalho que tenha conseguido antes de deixar o país de origem. Estas divergências, longe de serem idiossincrasias individuais, revelam de perspectivas ligadas a campos do saber e interesses diferentes e condensam-se na produção normativa, mais ou menos oficial, das instituições que federam tais interesses.

O Instituto Nacional de Estatística, por exemplo, reconhece dois tipos de imigrante, o permanente o temporário. Para efeitos estatísticos, o imigrante permanente é então o indivíduo que entrou no país com a intenção de aqui residir por um período superior a um ano, tendo residido no estrangeiro por um período contínuo superior a um ano. Por sua vez, o imigrante temporário entrou no país com a intenção de aqui permanecer por um período igual ou inferior a um ano, com o objectivo de trabalhar numa ocupação remunerada, tendo residido no estrangeiro por um período continuo superior a um ano, sendo que são ainda considerados imigrantes temporários os familiares e acompanhantes dos indivíduos com as características acima enunciadas. Mas o retrato robot do imigrante que surge no artigo 11.º da Convenção n.º 143 da Organização Internacional do Trabalho é bastante diferente; aí considera-se que para fins de aplicação do disposto nesta parte II da Convenção, o termo «trabalhador migrante» designa uma pessoa que emigra ou emigrou de um país para outro com o fim de ocupar um emprego não por conta própria, seguindo-se uma lista de excepções.

O campo semântico da palavra «imigrante» situa-se pois na intersecção das esferas de influência de diversos saberes e poderes. Essa situação conduz à multiplicação das variáveis pertinentes para a formação de um conceito de imigrante. Estas compreendem, pelo menos, a nacionalidade, a naturalidade, a intenção económica, a residência, o tempo de permanência, a legalidade e a situação na profissão. Se adoptássemos o pressuposto simplificador de que cada uma destas variáveis assume apenas duas modalidades, teríamos 27, ou seja, 128 combinações possíveis.

Há quem se tenha posto a reflectir sobre isto e vindo a concluir que, sendo a migração trânsito, fluxo, mudança, é falacioso derivar quaisquer substantivos dessa experiência fugaz. Sempre que chamamos alguém de emigrante ou imigrante estamos a perpetuar a migração, a condenar essas pessoas a uma viagem na qual, à semelhança da flecha de Zenão, nunca atingirão o destino. Não é inconsequente este tomar de um momento fugaz da trajectória de vida de um conjunto de pessoas por um seu traço fundamental. Os recursos e oportunidades de que estas pessoas dispõem a partir da imposição desse estigma, a sua subsequente percepção por terceiros e a própria visão que passam a ter de si conspiram, em tais situações, para que o conjunto se torne um grupo.

Afinal, ser é ser percepcionado e é com a ajuda de representações e de regras que justificam a diferenciação entre grupos que estes grupos se tornam ou continuam uma realidade. Esta mesma ideia foi já introduzida no campo da reflexão académica sobre imigração por Noiriel, afirmando este autor que o controlo burocrático determina a identidade dos imigrantes. Do exposto resulta que o «problema dos imigrantes», seja qual for a sua formulação, pertence, em grande medida, à categoria das profecias que se cumprem a si próprias.

Nem podia ser de outra forma. O controlo de estrangeiros é, tanto por razões simbólicas como por razões materialistas, condição necessária da constituição e manutenção do Estado. O conceito de estrangeiro é gémeo indissociável do conceito de cidadão; separados um do outro, nenhum dos dois tem qualquer sentido. Tal fica estabelecido por uma leitura, ainda que superficial, da sua actual fórmula legal: Para efeitos do presente diploma, considera-se estrangeiro todo aquele que não prove possuir a nacionalidade portuguesa. Note-se a presunção da culpa; quem não prove ser português será estrangeiro e, já que não tem qualquer documento que ateste a sua nacionalidade, seja esta qual for, como seria o caso de uma autorização de permanência ou residência, é também ilegal.

A própria União Europeia reconhece a confusão entre «imigrantes», «minorias étnicas», etc. e empenha-se no combate ao racismo e à xenofobia mas falha em reconhecer no «problema dos imigrantes» as características de um pânico moral, isto é, das reacções exageradas e amplificadas pelos meios de comunicação de massas que, segundo alguns autores, servem o status quo na medida em que se tornam pretextos para um “cerrar de fileiras” face a um inimigo comum. Esta ideia é tudo menos nova e remonta, pelo menos, até Jean Bodin, que constatava haver apenas uma forma de assegurar a continuidade de um Estado democrático: mantê-lo num estado de animosidade belicosa para com terceiros. E caso não haja inimigos, torna-se necessário inventá-los, sob pena de a discórdia grassar na república. Não é por acaso que o "choque das civilizações" feito realidade no 11 de Setembro é também susceptível de ser lido a esta luz.

Embora desde sempre as pessoas se tenham movido de uma região para outra, as migrações internacionais são um fenómeno inequivocamente moderno: para que as migrações fossem internacionais houve que esperar pela invenção dessa instituição fundamental da modernidade que é o Estado-nação. A par de um nacionalismo que se define por referência a uma comunidade imaginada e aspira a realizar-se num Estado-nação, a modernidade caracteriza-se também pelo capitalismo. E a imigração é precisamente um ponto onde as posições do nacionalismo e do credo económico liberal, que serve de ideologia do capitalismo nas sociedades ocidentais contemporâneas, se revelam irreconciliáveis.

Do ponto de vista de uma análise económica informada pelo paradigma liberal, as bases para a defesa da livre circulação do factor trabalho estão solidamente asseguradas, não havendo, portanto, argumento económico válido para a restrição das migrações internacionais. Contudo, os indivíduos e instituições para os quais o nacionalismo é uma coordenada fundamental da sua identidade não podem senão sentir o tratamento equitativo do outro como uma ameaça ontológica. O conceito de imigrante ganha pois a sua panóplia de significados e conotações neste conflito entre aspectos complementares de uma mesma corrente histórica.

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