sexta-feira, agosto 19, 2005

A entrevista - exercício em ruído sináptico

Um objecto que possa interpor ao interlocutor desconhecido que aguardo. Um livro: porque não me ocorreu trazer um livro? Espera! Tenho a moleskine! Salvo! Nada baliza o que sou, ou melhor, o que me quero apresentar como como uma moleskine. Se for efectivemente do meu interesse ficar neste sítio, o meu interlocutor saberá reconhecer este símbolo. Só é pena a caneta, uma miserável ponta de feltro fina, daquelas que recebem rigidez de um exosqueleto de metal. Que será feito da caneta de tinta permanente que costumava usar? Estará arrumada ou perdida? Há peças que faltam. A minha vida é como um motor sem todas as suas partes. Funciona, mas de forma penosa e susceptível de falhar a qualquer momento. Que será feito do X? Há algo que o chateia. As peneiras não o deixam menos perdido do que eu. Só estorvam. Choca-me a forma sistemática, deliberada como procuramos formas de nos sentirmos superiores aos outros. Todo o empenho mesquinho que vai nisso. Se a vida fosse uma contabilidade com duas colunas, uma para os perdidos e outra para os achados, o que ficaria na última? Montes de coisas: a miúda, o cão, a avó. Pessoas e coisas há que teriam de figurar em ambas as colunas. Talvez todas, porque panta rei, omnia mutantur. Eis um dito que daria uma boa tatuagem, força da ironia que nasce da pretensa durabilidade das tatuagens. Começo a ter sono. Já espero há imenso tempo. Vinte minutos desde que cheguei. Dá uma média de uma página, frente e verso, de moleskine por cada quinze minutos. É má onda, deixarem-me esperar tanto? Ou um teste à minha determinação e paciência? Será que vale a pena esperar tanto por uma oportunidade de servir a república portuguesa? Esperei trinta e dois anos. Posso esperar mais um pouco. Temo adormecer se fechar o livro. Vamos ver. Ouço o cumprimento - tee jay. Redes e o que circula nelas, texto fechado e sociabilidade. Tudo muito fluxo, tudo muito elemento água. Mercúrio. Saudade de Parménides. De um tempo de rochas. Scila e Caribdis. Onde figuram estas? Na Odisseia ou na Eneida?

Sexta-feira, 1 de Julho de 2005

2 comentários:

Anadil disse...

E tudo o queremos ser ou parecer se resume a uma capa preta de folhas rascunhadas e seladas com um elástico? Onde está a transparência na representação? Seja qual for o nosso símbolo ele será sempre opaco para algumas das partes, até para nós às vezes deixa de ter significado!

Frater Caerulus disse...

Não há nada tão snob como esnobar o snobismo alheio.