segunda-feira, junho 13, 2005

Até amanhã camarada


De Álvaro Cunhal
Originally uploaded by Anadil.


Há uns dias liguei a rádio e ouvi o fim de uma notícia: O PCP lamentava a perda de alguém de muitas convicções e ideais que muito contribuiu para a construção do regime democrático, Ministro de quatro governos provisórios, etc...Percebi então que se tratava de Vasco Gonçalves, mas o meu primeiro pensamento foi que teria morrido Álvaro Cunhal. Pensei na perda que seria TAMBÉM a morte deste senhor. E estava tão próxima, só passaram uns dias!

"Tenho visto alguns chamados protagonistas na vida nacional, que, na sua biografia, ou autobiografia, contam como eram em crianças, começam por aí, desde que nasceram. Eu não me lembro do momento em que nasci, o que senti ao chegar cá fora. Mas sei, por informações dos livros e por experiência dos outros, que chorei de certeza."
Cinco conversas com Álvaro Cunhal, Catarina Pires

1 comentário:

Anónimo disse...

Até sempre, camaradas Álvaro e Vasco. Até sempre!


E não esqueçamos outra grande perda que vivemos nestes dias: o homem doce e poeta do corpo, Eugénio de Andrade.


Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade